quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Recolhe

Recolhe

Terça feira, não era como se aquele fosse ser um dia especial para aquele solitário homem de quarenta e poucos anos, era apenas seguir a rotina mais uma vez, tomar o azedo café de dois dias atrás e ir para a porcaria de trabalho que lhe dava o sustento. Mas ele estava enganado, aquele era um dia especial, mas não necessariamente bom. Para começar, seu velho carro “del rei” engasga na hora de pegar e depois morre, provavelmente era o motor que já andava dando problemas e custaria uma fortuna pra arrumar. Já quase atrasado, pensaria depois sobre o carro, pegou sua maleta e saiu correndo para pegar um ônibus, na parada, um garotinho que estava correndo esbarra nele e ele quase cai, mas felizmente conseguiu equilibrar-se a tempo de ver o moleque saindo correndo com seu celular na mão. Xingando sem parar, mas ciente que seu condicionamento físico não o permitia correr atrás do garoto, pega o ônibus e segue seu rumo para o trabalho. No caminho, descobre que pegou o bus errado, e acaba num grande congestionamento. Com raiva, sai às pressas e acaba tropeçando no degrau, caindo de cara no chão. Já era uma questão pessoal, ele venceria aquela má sorte, levantou-se e saiu correndo, mas cansa poucos segundos depois e senta na calçada para refletir. O homem pensa em como a vida é injusta com ele e percebe que sentou em uma grande bosta de cachorro, como era otimista, pensou que aquele era um sinal para que ele se levantasse e continuou seu caminho até o trabalho. Quando estava atravessando a última rua antes do estabelecimento onde trabalhava, uma combe escolar esbarra nele (não foi exatamente um atropelamento), sem machucá-lo, mas rasgando todo seu terno. Ignorando os palavrões dos adolescentes que o zuavam na combe, entrou orgulhoso seu trabalho, respirou fundo e disse “Eu consegui!”, mas deu de cara com seu chefe, que ao vê-lo naquele estado, demitiu-o na hora.
Agora, solitário, sem emprego, sem carro e em breve sem casa, pois a pensão estava atrasada e ele não teria mais como pagar, o triste homem sai para caminhar e pensa em tudo de ruim que fez em sua vida. Percebendo o merda que ele sempre foi, ainda que não fosse religioso, clama por uma última chance aos céus, uma última esperança antes do fim. Alguns minutos depois, ele percebe que um ônibus estava bem próximo dele, como que o seguindo, então o homem para, e o ônibus anda até que a porta fique bem ao seu lado. Aos poucos ela se abre, e o som doce da descompressão enche os ouvidos do triste andarilho, o motorista nada faz, só olha para frente, vidrado, não havia cobrador. Que resta a alguém que perdeu tudo além de entrar em busca do desconhecido? Ele entra, a porta se fecha, e pela primeira vez em sua vida, ele foi feliz, partindo para o desconhecido, onde poucos antes dele foram. Nada se sabe sobre o ônibus, apenas que em seu luminoso estava escrito “recolhe”. O homem nunca mais foi visto, mas reza a lenda que ele pode ser visto até hoje, sentado no banco do cobrador dos ônibus em cujo luminoso está escrito “recolhe”, oferecendo uma nova chance àqueles a quem a própria vida abandonou, como ele. E perseguindo aqueles que são felizes, mas se acham tristes e não aproveitam a vida, levando-os para o desconhecido, onde nunca mais terão outra chance de serem felizes.



Espero que tenham apreciado esta pequena lenda urbana, e se um dia estiverem sozinhos e a ponto de desistir da vida, não se esqueçam de acenar para aqueles igualmente solitários ônibus, em cujo luminoso está escrito “recolhe”.

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